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cyro de mattos
29.Abril.2020

Crônica do Rio


E dizer que esse rio já forneceu água de suas fontes puríssimas para que todos matassem a sede no bebedouro da vida. Isso foi há muito tempo, a cidade tinha uma população pequena. Talvez nem chegasse a vinte mil habitantes. Ainda não havia sido instalado o sistema de abastecimento de água encanada para servir à população. O aguadeiro trazia a água do rio nos carotes, pequenos barris feitos com madeira de putumuju, que eram carregados pelos jumentos. Cada jumento carregava quatro carotes, dois de cada lado, pendurados na cangalha. O homem anunciava na rua: “Água do Mutucugê! Água boa do Mutucugê! Água fresca do Mutucugê! Quem vai querer?”

Muita gente vivia graças à bondade do rio. Lavadeiras, aguadeiros, pescadores e tiradores de areia, usada nas construções residenciais, armazéns e lojas. Uma gente das camadas pobres da cidade tirava o sustento da família com o que o rio lhe fornecia, de janeiro a janeiro. O rio era tido como o pai dos pobres.

Tinha muito peixe miúdo no raso, piaba, moreia, jundiá e beré. Muito peixe graúdo no fundo, robalo, pratibu, traíra, piau e bagre. E outros pescados: pitu, camarão e acari. Pela manhã, o pescador passava com as fieiras de peixe, batia à porta e oferecia os pescados à dona da casa: “Peixe fresco do Rio Cachoeira!” Na semana, de casa em casa, a cena se repetia. Na feira, aos sábados, o litro cheio de camarões era vendido por um preço barato na banca de peixe do pescador mais velho do rio.

Certamente o rio era uma canção de noite e dia. De uns tempos para cá foi forçado a esconder a face clara de antigamente nas camadas obscuras de hoje. Transpira e geme cheio de baronesas porque não consegue se libertar do impiedoso fardo de detritos, que os humanos diariamente despejam e travam a sua descida nas águas.

Esse é o preço que o velho rio paga por ter a cidade se expandido sem controle, chegando hoje a mais de duzentos mil habitantes, comentam os moradores mais velhos. Afoga-se na agonia pelo descaso dos que se submetem à paisagem de cores insensatas, formada por bocas enormes dos esgotos, que despejam nas águas sem parar o que não presta.

Cachoeira é o nome de um rio que chora água: anoitece e amanhece sem que nada seja feito para que seja liberado de seu pesadelo ou pelo menos amenizado nessa agonia, que não faz qualquer sentido, de tão absurda.

Quando a cidade era pequena, circulava nas veias a forte vontade de como ela queria crescer através do trabalho de seu povo. Movia-se com a riqueza de poucos abastados e o esforço da maioria pobre, mas sem miséria. Havia pouco movimento de carro na rua, os primeiros sobrados começavam a ser erguidos no local onde moravam as famílias ricas.

Entrava e saía verão, chovia no dorso do rio. A cidade esbanjava ardor com seu povo trabalhador e progressista debaixo dos azuis do céu e por entre os verdes que gramavam os barrancos do rio.

Podia haver dia melhor para tomar banho com os amigos nas águas do Poço da Pedra do Gelo? O rosto agitado, os gritos rasgando fendas no silêncio da natureza. Era quando o menino mais sorria, vestido de sonho no reino da infância. Evidente que isso só podia acontecer quando o rio, pleno de frescores e purezas, tinha peixe em abundância.

 

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# Artigo do escritor Cyro de Mattos. Ficcionista e poeta, também editado no exterior. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Uesc.

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