Um Cronista em Itabuna
Evidente que o escritor com mais anos vividos tem possibilidades de deixar um legado literário mais extenso do que os que vieram ao mundo para uma passagem breve. O legado menos extenso do escritor que não usufruiu muitos anos de vida não quer dizer menos representativo. Nossos poetas românticos tiveram poucos anos de vida e, nessa condição, deixaram obras importantes em nossas letras. Tornaram-se ícones de uma escola, gênero ou tendência. Casimiro de Abreu e Álvares de Azevedo faleceram aos 21 anos de idade. Castro Alves viveu até os 24 anos. Fagundes Varela alcançou os 34 anos. E o simbolista parnasiano Augusto dos Anjos viveu até os 34 anos. Se todos eles vivessem mais anos, até os 60 anos, por exemplo, provavelmente deixariam uma obra mais fecunda com a mesma expressividade de suas percepções estéticas do mundo.
Esse questionamento acerca do escritor e o tempo que teve para escrever a sua obra, enquanto viveu, me faz pensar sobre o caso de Manoel Lins, autêntica vocação de cronista, revelada na década de 60, na cidade de Itabuna, no sul da Bahia. Publicava uma crônica por semana no “SB Informações & Negócios”, um jornal pequeno, de poucas páginas, mais para tablóide, com pouco espaço para o cronista ou o articulista estender a escrita que focasse um assunto de interesse pessoal ou relacionado com a comunidade. Compareceu também no jornalzinho “Desfile”, com o mesmo formato de “SB Informações & Negócios”. Certos textos de Manoel Lins pareciam que eram mais flashes do cotidiano, fragmentos de escrita que poderiam ser mais desdobrados no seu conteúdo. Penso que isso se dava em razão de ser pequeno o espaço que lhe era reservado para que fosse inserido o seu texto. Nem por isso seu texto breve ressentia-se de reflexões, sentimentos poéticos, apreensões metafísicas do homem no mundo com suas circunstâncias e enigmas.
Manoel Lins como leitor andava em boa companhia. Era admirador dos cronistas Rubem Braga, Stanislaw Ponte Preta, Fernando Sabino e Carlos Heitor Cony. Gostava de citar os poetas Pablo Neruda, Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade. Da música popular brasileira, Dorival Caymmi e Chico Buarque tinham cadeira cativa em seu coração.
Ao lado desse bom gosto de leitor e ouvinte, que em geral marca o tom de qualquer vocação que se quer desenvolver como escritor, precisando ler muito para se realizar no processo, ele tinha um talento reconhecido por leitores e quem militava na área das letras locais. Nesse prosador de pequenos cortes emergiam relevos sobre a vida cotidiana. Latejava sensibilidade, acompanhada de sutilezas, flagradas nos fatos ocorridos na província ou lá fora, no Vietnam ou nos Estados Unidos. Selecionava do real objetivo o necessário para que seu apurado gosto transformasse o assunto na crônica de boa qualidade. Retirava do fugaz no cotidiano aquilo que só o cronista com sua perspicácia e devaneio percebe, observa para além das aparências com o seu eu lírico.
Vivesse mais anos, deixaria um legado literário fecundo. Seria mais um dos bons escritores que fazem do sul da Bahia uma região poderosa na prosa e no verso das letras brasileiras. Não dúvida em afirmar que o bom cronista resultaria no contista e no romancista. Afirmo isso sem hesitar porque esse moço de coração bom, sentimentos ricos, facilidade de manejar os sinais visíveis da escrita, a serviço do humor, da poesia, toques filosóficos, tinha passarinhos cantantes na cabeça. Preocupava-se com os outros em tempo de dor e tristeza.
Era, assim, um cronista nato em pleno exercício qualificado de sua vocação. Publicou em vida apenas O menino aluado (1968), livro de crônicas. Nasceu aos 4 de fevereiro de 1937, em União dos Palmares, Alagoas, de onde é oriunda a família. Residiu em Buerarema, e exerceu a advocacia em Itabuna. Era também jornalista. Vítima de acidente automobilístico, faleceu em 1975. A morte prematura desse talentoso cronista passa pelo absurdo das situações incompreensíveis e até hoje se lamenta.
Participando do espetáculo da vida, confrontando, insurgindo-se, solidarizando-se, mergulhado em solidões, suas crônicas são retalhos primorosos do ato e o fato da natureza humana nas formas das ocorrências da existência. Entre o riso e a tristeza, manifestam-se com as doses apropriadas de sentimento do mundo. Contrariando as suas observações pessoais, digo que ele é um prosador que poetiza a vida, um lírico de muitos jeitos para informar o que sente. Dá novos sentidos à vida quando inaugura uma janela, uma passagem dentro de inquietações, contradições e dúvidas. Cultiva o amor para vencer a morte. Sua escrita extrai do efêmero o eterno revestido com o estofo literário. Consegue produzir no leitor aquilo que é próprio do bom cronista, só ele com o seu discurso inventa e transmite: a comoção.
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# Artigo do escritor Cyro de Mattos. Ficcionista e poeta, também editado no exterior. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Uesc.
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