Crônica de Mãe Otaciana
Minha avó Ana dizia que uma mãe é para cem filhos e cem filhos não são para uma mãe. Que dizer então de uma mãe que teve mais de centena de filhos e um número incalculável de netos?
Otaciana Eráclia Ferreira Pinto muito cedo pôs os pés na estrada deste mundo de Deus. Mas foi em Itabuna, outrora cidade rica na região de plantações de cacau, que iria passar toda a sua vida. Vida bem vivida, como gostava de dizer aquela criatura baixinha, enrugadinha, incansável, de bons préstimos e muito estimada. Na cidade do sul da Bahia, a professora nascida em Arraial do Galeão iria seguir uma vocação diferente, a de “pegar menino”, numa época em que parto em maternidade não era constante.
Pelas mãos de Mãe Otaciana nasceram homens e mulheres que construíram o progresso da cidade. Pelas mãos pacientes de uma criatura que tinha olhos pequenos, Deus anunciou o milagre da vida. Mostrou a flor gerada com ansiedade e, no desenlace feliz, sendo levada para o calor do seio.
Um dia, com aqueles olhinhos vivos, que pareciam sorridentes quando ela falava, contou-me como ocorreu o primeiro parto que fez. Fora chamada à noite, o tempo escuro e chuvoso. Bem moça, coração confiante, chegava à casa da parturiente, que passava mal. Passados aqueles minutos sempre lentos, de apreensão para os de casa, escutou-se dentro da noite o choro da criança. O pai limpou a turvação ardida nos olhos com a manga da camisa. Observou: “Foi esse calanguinho aí que deu todo esse trabalho!” A partir daquele parto, a professora que veio do sertão deixaria de ensinar, enquanto vivesse mãos cuidadosas jamais deixariam de “pegar menino”.
Mãe Otaciana nunca foi política, mas se elegeu duas vezes como vereadora pelo extinto Partido Social Democrático. Nunca fez campanha, nunca compareceu a comício. Foi candidata por imposição dos amigos. Quando sabia, já estava eleita. Da última vez que encontrei Mãe Otaciana, saindo de sua residência, perguntei-lhe se começaria tudo de novo no seu ofício de parteira. Ela, sem hesitar um minuto, irradiando calor e alegria, numa voz baixinha quase não se ouvindo, respondeu que sim. Era muito apegada com Deus. Nunca teve problemas na arte de “pegar menino”. Sempre que um parto era difícil recorria a um médico, que dava todo o apoio e ajuda, e essa mão amiga a fazia feliz. Encerrou a conversa com uma observação que, em seu significado puro e verdadeiro, muita gente na cidade conhecia: “Na vida trabalhei muito, meu filho”.
Forte, abnegada, sábia. Com aquele saber simples e profundo recolhido das águas do tempo. Só consigo vê-la nesse instante como uma criatura aparentemente frágil, mãos pequenas, cabeça alva, rumo à casa da parturiente.
Encurvadinha, acalentando luas, recolhendo a vida, que, enrolada com a capa do mistério, chega dos longes divinos, para dar nesse beijo alegre o primeiro vagido.
Revejo-a com os olhinhos sorridentes, rosto lúcido, aparando o susto esplêndido dentro da noite caprichosa. Noite túmida que, adormecida no seio, ainda nem sonha.
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# Artigo do escritor Cyro de Mattos. Ficcionista e poeta, também editado no exterior. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Uesc.
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