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16.Novembro.2024

Nosso Herói Jipe e Maria Camisão


Jipe não era apenas mais um doido manso com suas esquisitices que habitou minha infância cheia de sentimentos e graça. Era o mais querido por gente grande e pequena. Hélio Pólvora, nascido em Itabuna, ficcionista dos melhores da moderna literatura brasileira, dedicou-lhe o conto “No Peito o Motor”, que faz parte do livro Estranhos e Assustados, publicado pela editora Francisco Alves, Rio, 1977. Teve várias edições, deu ao autor o Prêmio Nacional da Fundação Castro Maia.

Depois do conto primoroso do conterrâneo Hélio, tive a ousadia de escrever um texto de ficção breve sobre nosso herói do trânsito, que de repente se achara que era de corpo e alma um jipe. O título do meu texto é “Um Jipe nas Nuvens”. Faz parte do livro Nada Era Melhor, da Editus, 2017, é uma reunião de contos curtos ou romancinho da infância, se quiserem. Jipe aparece no meu romance Eterno Amanhecer, ainda inédito, com mais destaque.

Os meninos de meu tempo consideravam os doidos mansos como uma gente indefesa, ingênua, engraçada, sofrida, invenção do destino. Tanta consideração tínhamos por eles, que meu livro Zurububuruna, Editora Batel, Rio, 2024, poesia satírica em formato de cordel, sobre uma gente que habita com suas vilanias uma localidade imaginária, é dedicado aos doidos mansos de minha terra, claro que na homenagem não podia faltar nosso famoso Jipe.

Eis a dedicatória no meu livro Zurububuruna:

Aos doidos mansos de minha terra, que não fazem mal a uma mosca. Ingênuos, indefesos, perseguidos pelo fado. Incansáveis intérpretes da vida diária, riso do trânsito. Mula-Manca, Maria Camisão, Ciro Mergulhador, o tal Jipe falado. Zeles Carnavalesco, mais Chiranha, mais Paturi, meio azoado, entre outros, dedico com muito gosto esses versos de pé quebrado.

Maria Camisão vestia uma camisa folgada, mangas compridas, de tão grande batia nos joelhos. Ela era de estatura baixa, os cabelos sempre assanhados, a boca desdentada. Alguns diziam que guardara como lembrança meia dúzia de camisas do seu homem, um preto alto e forte. Vivia do ganho da roupa que lavava para a família abastada. Nas horas de crise aparecia na avenida do Cinquentenário. Revoltava-se, xingava a Deus e o mundo. Comentava-se que ela havia ficado adoidada depois que o marido amanheceu enforcado na cadeia, dizem que a mando do delegado Nero, que armara para ele uma cilada. O delegado mandou que os dois soldados tomassem as caças moqueadas e prendessem na feira o homem chamado Barba Preta. Não demorou, não se sabe como, o delegado passou a ser o dono da rocinha de cacau e cereais, que o negro Barba Preta havia plantado nas Salteadas.

Escrever sobre esses tipos curiosos de minha terra, convenhamos, é atender com prazer no tempo o aceno das distâncias. O aceno dos dias com sua graça e lamento. Eles preenchiam a minha infância como um episódio relevante da vida, sem que nada me custasse.

 

 

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# Artigo do escritor Cyro de Mattos. Ficcionista e poeta, também editado no exterior. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Uesc.

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