Gabo/Berrio/Macondo/Maracanã
Na antológica abertura de Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez, Aureliano Buendia, diante do pelotão de fuzilamento, lembra o fascinante e distante dia em que o pai lhe apresentou o gelo, maravilha da humanidade naquele rincão perdido nos confins da Colômbia. A narrativa é antológica, sinalizando o que o mundo conheceria e admiraria como o realismo fantástico de Gabo.
Na já antológica noite de 23 de agosto de 2017, um colombiano menos famoso chamado Orlando Berrio nos reapresentou a algo que estava perdido nos desvãos da memória de um futebol que era jogo, mas também era poesia: a magia do improviso, do drible desconcertante que destrói um esquema mecânico, monótono e previsível.
Flamengo e Botafogo faziam um daqueles jogos modorrentos, típicos do futebol atual, onde o importante é se defender e se der ou quando der, atacar. Meio de campo congestionado, goleiros sem serem incomodados e o indefectível cheiro de 0x0.
E eis que no ex-Templo do Futebol, hoje mais um exemplo do tributo ao deus corrupção, o Maracanã foi apresentado ao gelo.
Como se Garrincha, numa dessas molecagens do destino, resolvesse reencarnar por um átimo de segundo no estádio onde foi rei e menino travesso, e trazer um pouco de luz naquela escuridão de futebol.
E, noutra trapaça do destino, reencarnar no time errado, botafoguense que foi, e ainda por cima num colombiano com pinta de milongueiro e estampa de dançarino de tango. Ou de cumbia. Ou seria de samba? Orlando Berrio.
Berrio estava pronto para ser substituído e recebeu uma bola na lateral. Lance comum. Ninguém no Maracanã esperava nada da jogada e o próprio Berrio poderia ter se livrado na bola e saído de um jogo do qual ninguém se lembraria daqui a uma semana.
Mas Berrio (Garrincha?) produziu o lance a ser lembrado daqui a Cem Anos (de Solidão). Um drible tão desconcertante quando indescritível, que resultou no passe perfeito para o gol de vitória. Filho, eis o Gelo!
Maravilhem-se todos pois esse é um daqueles raros momentos que vão para a eternidade. O divino, o imponderável, o fantástico, o genial, a irreverência gerados num pedacinho de gramado transformando em latifúndio.
Meninos eu vi, dirão daqui pra frente os que estiveram no Maracanã. E os que não estiveram, testemunhas multiplicadas aos milhões. Macondo é o universo. Aproveitemos o gelo.
Congela, eterniza a imagem.
O resto, o gol, a vitória, a classificação do flamengo para a decisão da Copa do Brasil contra o Cruzeiro, são meros detalhes.
Eterno é Berrio, numa obra de arte que Gabo assinaria. Maracanã, Macondo.
Na magia de um drible esse mundo de merda ainda pode ser uma alegre Bola de Futebol.
Com Gabo e Berrio, fecho um ciclo de 30 anos nestas folhas sempre manuelinas que são a extensão de minha vida vivida. E continuarão sendo.
Sigamos adelante pelas macondos da existência.
Coluna do jornalista Daniel Thame.
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