25.Janeiro.2003
''O novo Código Civil tem falhas e pouco mudou''
diz o juiz Luiz Bezerra, se referindo à inclusão de leis que deveriam ser atualizadas. Titular
da 1ª Vara Civil da Comarca de Itabuna, professor de Direito Processual Civil da Universidade
Estadual de Santa Cruz (Uesc), mestrando em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPe), além de diversos cursos de pós-graduação, o juiz Luiz Bezerra diz que o novo Código Civil,
que está em vigor desde o dia 11 deste mês, apresenta muitas falhas.
O magistrado reclama que o Código não tem dispositivos que regulamentem as relações via Internet
por exemplo, o que deixa os juízes sem resposta, além de que muitos pontos fundamentais ficaram de
fora. Não houve preocupação em abordar as questões polêmicas como o casamento entre homossexuais, ou
aprofundar mais em situações envolvendo crianças e adolescentes, aponta Luiz Bezerra.
Ele entende que quase tudo que se buscou regulamentar com o novo Código Civil já era feito na
prática pela Justiça, salientando ainda que a tendência hoje é de constitucionalização do direito
privado, do direito civil, logo, por esse critério, o novo Código se mostra no mínimo inoportuno,
dentro da política do direito.
A Região - O novo Código Civil valoriza o chamado "modelo jurídico aberto". O que isto significa?
Luiz Bezerra - Historicamente o direito sempre trabalhou não para emancipar nenhuma relação
social-política, mas para garantir aqueles privilégios alcançados pela sociedade. Então quando se
fala em modelo aberto significa um modelo liberal ou neo-liberal, como preferem, no sentido de que
as pessoas resolvam suas relações jurídicas, o chamado direito privado.
AR - Como assim?
LB - O problema é que atualmente a tendência política do direito é caminhar para uma publicização,
o que significa que o Estado tem que garantir todas as relações jurídicas em que as pessoas estão se
envolvendo. Por que isso? Porque o cidadão está fragilizado, pois as relações deixaram de ser entre
pessoas e passaram a ser entre o cidadão e as organizações nacionais e internacionais, por isso o
Estado tem que intervir. A tendência hoje é de uma constitucionalização do direito privado, do
direito civil, logo por esse critério o novo Código se mostra, no mínimo inoportuno, dentro da
política do direito.
AR - Quer dizer que as relações jurídicas permanecem mais subjetivas?
LB - Há quem sustente - e eu inclusive acolho muito bem - o argumento de que o novo Código
Civil é uma tentativa de manutenção das relações de pessoas para pessoas ou seja, vale a autonomia
da vontade, portanto muito subjetiva. Isto significa o trabalho com o interior da pessoa. O que
vemos hoje na realidade, é uma fragilização do homem diante das relações econômicas globalizadas.
Portanto o Código vem para manter essa subjetividade ou inter-subjetividade do Direito, o que tende
ser prejudicial à sociedade.
AR - Os juízes para quem "o que está fora dos autos está fora do mundo" não terão dificuldades de
adaptar-se ao novo Código?
LB - O que prevalece hoje é a chamada Justiça Social, em que o juiz não deve se pautar unicamente
naquele jargão de dura lex, sed lex, ou é a lei, está na lei, a culpa é da lei. O que se deve é
resolver as defasagens diante do fato jurídico. Então, na aplicação da lei ao fato jurídico o juiz
não tem que se pautar só com as relações digamos assim, legalmente estipuladas, porque a lei é o que
está escrito e o que o magistrado determina. A lei é muito de hermenêutica, o juiz tem que
interpretá-la com a visão social-política da atualidade.
AR - Como o senhor vê o ponto que trata da igualdade entre pai e mãe com relação à guarda dos
filhos, no caso de separação?
LB - O princípio da isonomia, posto na Constituição de 1988, já conduzia os juízes a superar, nesse
particular, o Código Civil revogado. O novo Código não mais fez que disciplinar algo que os juízes
já faziam valer, qual seja a igualdade entre as pessoas com base na Carta Magna. Não é mais possível
se imaginar privilégio nenhum por conta de uma diferenciação sexual, com decisões favorecendo o
homem ou dando vantagens à mulher. Essa não é uma determinação do novo Código Civil, e sim da
Constituição.
AR - O senhor não vê o novo Código Civil como um avanço social, com a Justiça extensiva a maior
número de cidadãos?
LB - Não. Estou no grupo dos pensadores do Direito que vêem no Código Civil atual dois problemas
sérios. Primeiro, a desatenção diante da tendência da publicização do Direito, ou seja, de um Estado
garantidor das relações sociais. O Código Civil, como lei de direito privado, tende para outra
linha. O segundo ponto é que o Código já nasceu defasado, porque muitas das relações jurídicas
inegáveis, grassando da população de todos os países, ele não conseguiu contemplar.
AR - O senhor poderia dizer quais relações são essas?
LB - São diversas, e posso citar algumas. Nas questões envolvendo os menores e adolescentes por
exemplo, o Código Civil é muito pobre, poderia ter avançado. Posso citar ainda as relações entre
homossexuais, que o Código nada determina. Ele diz o quê sobre o casamento entre pessoas do mesmo
sexo? Nada. Tem também a externa guerra na disputa da terra entre fazendeiros e índios em todo o
país, com o povo indígena querendo os seus diretos originários e os produtores demandando a
implantação de benfeitorias e aquisição da terra de boa fé. Nada disso quem reformulou o Código se
preocupou em incluir.
AR - O senhor diria que as mudanças facilitam o golpe do baú?
LB - Não. A figura do golpe do baú não decorre já há um bom tempo. Essa situação foi abolida com a
lei do divórcio, em que foi estabelecido que o regime no silêncio das partes (aquele em que o casal
não debate como será a partilha de bens, caso se separe) não fosse mais o da comunhão total de bens,
e sim parcial.
AR - Então não foi o novo Código Civil que modificou isso...
LB - Exatamente. Antes da lei do divórcio a Justiça entendia que o regime deveria ser total de bens.
Mas percebemos que essa situação facilitava o casamento mais por interesse do que por amor, e que
muitos noivos não debatiam o assunto por achar constrangedor. Eles silenciavam, e na hora de
oficializar o casamento o que valia pela lei era o de regime total de bens.
AR - As mudanças no novo Código já valem para os processos em andamento?
LB - Existem dois princípios para trabalhar a questão de temporalidade da norma. Quando sai uma
norma nova, há um princípio constitucional garantindo que a lei não pode retroagir para desmerecer o
ato jurídico perfeito, por exemplo, a coisa julgada. Nos casos em que já ocorreram figuras desse
tipo, a lei nova não pode ser aplicada, mas em se tratando de situações diferentes, o novo Código
pode ser utilizado, inclusive estando o processo em curso. Então vai depender da situação
especificamente ou da fase do processo.
AR - Parece que o senhor não enxerga nenhum benefício social com o novo Código Civil...
LB - É verdade. Entendo que ele poderia avançar nas questões que chamamos de ciberdireito, e nesse
sentido nada foi falado. Também não foram incluídas por exemplo, as leis que podem ser aplicadas em
caso de divergência em transações pela internet. É feito um grande volume de compra pela rede
mundial de computadores, mas nada é regulamentado e os juízes não sabem como decidir a questão.
Ainda podemos citar os problemas classificados de biodireito, que não se sabe onde o magistrado pode
ou não reconhecer direitos de paternidade.
AR - Como por exemplo...
LB - Existe a possibilidade de se detectar a paternidade ainda na vida intrauterina por exemplo, e o
novo Código Civil não diz como os juízes devem agir em tais casos. Logo faltou muita coisa para ser
debatida e incluída.