- proclama Esther Caldas Guimarães Bertoletti, assessora especial do Ministério da Cultura (MinC),
nascida em Coaraci em 1941, casada, quatro filhos, em visita à região.
Ela coordena o Projeto Resgate, destinado a devolver ao Brasil toda nossa documentação existente na
Europa, além de, como funcionária da Biblioteca Nacional, organizar um acervo com os livros e
jornais brasileiros editados em qualquer lugar e em qualquer época.
Esther Caldas, filha do deputado e fazendeiro Oswaldo Caldas, lembra que lutou contra aquela coisa
de filha de coronel do cacau, mudando-se aos 18 anos de Ilhéus para o Rio de Janeiro, onde estudou
Direito e Jornalismo. Trabalhou com Gilson Amado, colaborou com os jornais Diário da Tarde e Novas
Metas, neste publicando entrevistas com Sosígenes Costa e Adonias Filho.
"Fui líder estudantil, fui suspensa da Faculdade, comunguei de idéias de esquerda durante a vida
inteira, estudei na Itália, trabalhei na Rádio Vaticana, fiz muita subversão por lá," conta com um
sorriso maroto.
Atualmente, com extrema simplicidade e juvenil entusiasmo, se empenha em colocar antigos e raros
documentos do Brasil a serviço dos brasileiros. A seguir, os principais trechos da entrevista a
Antônio Lopes:
A Região - Qual é o aspecto prático para o cidadão comum, da vinda desses documentos para o Brasil?
Esther Caldas - É o resgate de um direito do cidadão. O cidadão comum tem direito a ter
acesso à sua história, à sua memória. É preciso que ele tenha acesso a coleções de jornais, nem que
seja para atender a simples curiosidade, por exemplo saber como a cidade de Itabuna se formou, como
cresceu. Os documentos holandeses por exemplo, mostram a história da invasão holandesa em
Pernambuco, abrindo essas informações aos estudantes de História, Direito, Belas Artes nesse acervo
estão os quadros de pintores famosos que vieram com Maurício de Nassau.
AR - Isto quer dizer que o projeto Resgate deixa o Brasil mais próximo dos brasileiros?
EC - Creio que possa ser dito assim. A idéia é trazer para o cidadão brasileiro a sua memória
escrita, que estava em lugares inacessíveis. Estamos trazendo da França toda a parte das invasões
francesas: São Luiz do Maranhão chama-se São Luiz por causa do rei da França. Mas quantas pessoas em
São Luiz sabem disso? Com essa documentação os estudantes - o Brasil tem hoje mais de 50 mil
estudantes de História - estarão em contato com essa parte de nossa memória.
AR - É urgente então, reescrever os livros de História?
EC - Hoje se fala em reescrever a História do Brasil por conta de rever a história dos índios e
dos negros, esta ainda por escrita. A documentação sobre a história do negro está toda em Portugal,
nos arquivos paroquiais, nos arquivos cartoriais. Poucos anos depois da independência os então
chamados literatos já diziam que nós próprios tínhamos que escrever a nossa história, porque ela foi
escrita pelos portugueses e pelos franceses. Com esse retorno da documentação, esse objetivo está
mais próximo de ser alcançado.
AR - E como esses documentos do projeto Resgate vão estar à disposição dos interessados de qualquer
ponto do Brasil?
EC - Cada Estado vai receber cópia da documentação desse Estado. Os documentos da capitania do
Maranhão vão para o Maranhão; a documentação da Bahia vai para a Bahia. E o Ministério da Cultura
está empenhado em conseguir recursos junto à iniciativa privada e fundações para ter a documentação
de todo o Brasil em cada Estado. Quem quiser pesquisar por exemplo, a situação dos professores
régios, não precisará se deslocar para o Rio de Janeiro...
AR - E o que eram os professores régios?
EC - Com a destituição dos jesuítas feita pelo marquês de Pombal, chegam os professores régios,
assim chamados porque eram contratados pela Coroa para substituir a escola jesuítica. Alguns saíam
do Ceará por exemplo, e vinham para a Bahia, apesar da enorme distância. Mas é que a Bahia era uma
capitania muito rica, e certamente tinha lá suas vantagens.
AR - Mas o projeto, em termos de aproximar-se do cidadão, não pára por aí...
EC - O grande passo no caminho da democratização do conhecimento será colocar essas informações na
Internet. Isto sim será a grande abertura, pois o cidadão terá acesso ao documento a partir de sua
casa, de seu local de trabalho. E não é porque nós estamos sendo bonzinhos. Isto é direito do
cidadão.
AR - E este contato com a Região Cacaueira depois de uns quarenta anos, o que significa para a
senhora?
EC - A minha vinda para um seminário na Uesc me proporcionou uma retomada com a intelectualidade
local, as pessoas que pensam Ilhéus, que pensam Itabuna. Encontrar com Ariston Cardoso, encontrar
essas pessoas, como o senhor próprio, para mim foi muito importante, porque tive contato com a
literatura local, com o pensamento local, que dificilmente nos chega através dos canais naturais.
AR - Quais são as dificuldades que a senhora enfrenta quanto à aquisição de livros e jornais no
Brasil?
EC - Os livros editados em Itabuna e Ilhéus dificilmente você encontra em livrarias do Rio de
Janeiro. Em geral o que é editado fora do eixo Rio - São Paulo, a gente tem de pedir a um amigo pelo
amor de Deus que nos mande. Por exemplo, a história da imprensa, em que eu estou interessada, eu
jamais conheceria esse livro [De Tabocas a Itabuna: 100 anos de Imprensa, de Ramiro Aquino] se não
viesse a Ilhéus e Itabuna, se as pessoas não me tivessem falado.
AR - E qual é o balanço desses contatos que a senhora manteve? Como estamos, em termos de produção
intelectual?
EC - A região tem uns vinte autores atuantes: Antônio Lopes publicou dois ou três livros, Maria
Schaun publicou, Ariston [Cardoso] publicou. Isto significa que existe vida intelectual na cidade,
as pessoas não estão apáticas, estão propondo reflexões. A lei que obriga a remessa dessas
publicações à Biblioteca Nacional é importante para que essa reflexão aqui gerada seja conhecida
fora das fronteiras do município. Esse material livros, jornais, CD, fitas será preservado pela
Biblioteca Nacional para daqui a cem anos.
AR - São esses pedaços regionais que fazem o Brasil...
EC - Perfeito. Nós somos pedaços de história, a história do país se faz através das histórias
regionais. Conhecer a história local é conhecer a história do mundo. A literatura do cacau não é só
Jorge Amado, não é só Adonias Filho, cada autor aqui ainda tem muito a dizer, porque os personagens
ainda estão aí para serem trabalhados e discutidos e até colocados no plano nacional.
AR - O que ainda liga a senhora à região, tantos anos depois?
EC - Todas as minhas raízes estão aqui, fico muito feliz em retornar a essas origens. Minha mãe
era de Uruçuca, Água Preta, e meu pai era de Ilhéus. Até os 18 anos freqüentei muito Ilhéus e
Itabuna, depois estudei Direito e Jornalismo no Rio, trabalhei com Gilson Amado, irmão de um líder
regional (Gileno), também um pouco com Antônio Balbino. Escrevi para o Diário da Tarde (com Otávio
Moura) e Novas Metas (com Gerino Passos), no qual publiquei entrevistas com Sosígenes Costa e
Adonias Filho.
AR - É possível anotar as mudanças na atividade intelectual daquela época e da região que a senhora
visita hoje?
EC - Há quarenta anos, quando eu andava por aqui, havia duas ou três pessoas que publicavam
livros, até porque publicar era muito difícil, não só pelos recursos, mas também porque as pessoas
não tinham ainda o adestramento necessário. Hoje uma pessoa se sente capaz de colocar sua poesia em
formato de livro e divulgar, por isso há muitas pessoas que escrevem e que estão fazendo pensar.
Ninguém publica livro para seu prazer, para sua vaidade.
AR - Uma função do livro é fazer pensar?
EC - Ele é importante para que outras pessoas possam pensar, porque estão aí a literatura
estrangeira, o lazer vazio típico da televisão, os filmes que não levam a nada. Então cada um de
vocês, que já publicaram, torna-se importante ao fazer com que outras pessoas pensem, motiva a
juventude para que amanhã ou depois escrevam a história de hoje. Estamos vivendo a história do
passado, mas a história de hoje vai ter que ser escrita e será baseada nessas reflexões que vocês
fizeram. A vida é um concatenar de reflexões.
AR - A senhora é tida no MinC como pessoa inquieta, agitadora cultural no mais puro sentido da
expressão...
EC - O papel de cada um de nós é mexer um pouco com a água parada. Às vezes as pessoas estão
acomodadas, estão no seu mundo, tranqüilas, precisam ser sacudidas. Eu acho que a cultura é
agitadora por natureza, ninguém trabalha com cultura de forma pacífica, acho que é da própria
natureza da cultura. Meu papel é um pouco disso, sou mesmo irrequieta, acho que a gente sempre tem
de estar procurando dar mais do que é possível dar, sem nunca estar satisfeita.