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Caso Leal: 5 anos impunes
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30 de Agosto :: Caso Leal

Anatomia de um crime

A noite de 14 de agosto de 1998 prometia ser especial para o jornalista Manoel Leal. Aguardava-o em Ilhéus um jantar com o amigo de décadas, o escritor e jornalista Hélio Pólvora.
       O cardápio, além da boa comida e do vinho que Leal apreciava com moderação, incluía os preparativos de um passeio de barco entre o Banco da Vitória e a foz do rio Cachoeira, revivendo a trajetória de um nobre alemão do século XIX.
       Movido a paixões momentâneas que adotava como a vocação definitiva, Manoel Leal estava encantado com o passeio que ocorreria no domingo seguinte. Até reservara um barco no qual reuniria amigos itabunenses.
       Nas edições anteriores, o jornal A Região estampava com destaque a programação do passeio, sua importância histórica, o potencial turístico do rio Cachoeira e, óbvio, o apoio do prefeito Jabes Ribeiro ao projeto.
       Mas as edições anteriores de A Região não traziam apenas amenidades turísticas. Pelo contrário, novembro e dezembro haviam sido meses em que o jornal vinha elevando o tom em suas denuncias contra o então prefeito Fernando Gomes.
       Em novembro, lançou uma bomba de nêutron que pulverizou a carreira do delegado Gilson Prata, à época uma das mais cintilantes estrelas da polícia baiana, nome cotadíssimo para assumir a Secretaria de Segurança Pública da Bahia.
       Prata, a pedido de Fernando Gomes, vinha promovendo uma autêntica caça às bruxas contra pessoas então ligadas ao ex-prefeito Geraldo Simões. A investigação de uma suposta fraude no recolhimento do IPTU incluiu invasão de domícilio, depoimentos sob coação e prisões notadamente arbitrárias.
       Mesmo tendo à sua disposição a estrutura do Complexo Policial de Itabuna, Gilson Prata preferiu instalar seu QG no gabinete do ex-vice-prefeito José Orleans, na sede da prefeitura.
       Em novembro, após uma consulta feita pelos vereadores Emanuel Acilino e Everaldo Anunciação ao Tribunal de Contas dos Municípios, A Região estampou em manchete que o delegado Gilson Prata havia recebido dinheiro da Prefeitura de Itabuna, a título de pagamento de diárias. Além de Prata, também recebeu dinheiro o policial Mozart da Costa Brasil.
       A notícia, confirmada por documentos, não apenas dinamitou a carreira de Prata como implodiu as investigações sobre o IPTU, deixando evidente tratar-se de perseguição política.
       Uma entrevista titubeante do delegado (mais uma vez na prefeitura) ao lado de um constrangido e ao mesmo tempo irado Fernando Gomes para explicar o inexplicável, coroou a denúncia que alguns apontaram como bombástica e outros como temerária.
       "Vocês são loucos. Brigar com um delegado poderoso desses!" foi uma das frases que se ouviu.
       E brigar com um delegado poderoso depois de passar um ano brigando com Fernando Gomes e a sua poderosa escudeira Maria Alice.
       "Juntou a vontade de fazer com a coragem de fazer", foi uma das frases que se sussurrou.
       O Espírito de Natal perdeu de goleada para o espírito sarcástico de Manuel Leal.
       Na edição especial de fim de ano, contrariando a lógica das matérias água com açucar, A Região trouxe nas páginas centrais uma série de charges mostrando a generosidade de um hipotético Papai Noel que, em 12 meses, transformou um Fernando Gomes endividado num homem dono de imóveis, carros, fazendas, centenas de cabeças de gado de raça.
       O tal Espírito de Natal também perdeu de goleada para aqueles que acharam que o único jeito de calar Manuel Leal era calar no sentido literal.
       Na virada daquele ano difícil para as finanças do jornal, Leal ainda foi capaz de produzir um de seus muitos gracejos. Diante de um empresário que não queria publicidade sobre a bem fornida cesta de Natal de seus funcionários, apesar da insistência de Leal em publicar a entrega das cestas no jornal, o jornalista fez blague:
       "E eu que nem posso dar um franguinho mirrado para os meus meninos".
       Mentirota. O peru daquele ano, bem como o inevitável panetone, foi religiosamente entregue de casa em casa pelo próprio Manuel Leal.
       Seriam os últimos perus e panetones daquele que seria o último Natal de Manoel Leal.
       "Passa essa bola, filho da puta..."
       "Caralho, eu jogo meu jogo. Vá se foder..."
       "Vá se foder você. Pega uma bola e joga sozinho..."
       Apesar da semi-escuridão daquela noite abafada de verão, meninos jogavam bola e trocavam as costumeiras gentilezas entre si num campinho de terra batida.
       Nesse mesmo momento, uma funcionária responsável pela emissão de carteiras de identidade no Complexo Policial subia as escadarias ao lado do muro da Escola Roberto Santos.
       A cena se completa: Manoel Leal desceu de seu carro, uma Paraty, para abrir o portão de sua casa, localizada entre o Complexo Policial e o Batalhão da Policia Militar.
       Um ato rotineiro, sem qualquer preocupação com a segurança, , como se Manoel Leal não fosse um homem visado, ameaçado.
       De repente, um tiro, dois tiros, três tiros, quatro tiros, cinco tiros interrompem o jogo de futebol e fazem com que a funcionária recue escadaria abaixo. Ainda deu tempo de ver nitidamente o assassino dar o primeiro tiro. O único dado pela frente. Os demais foram pelas costas.
       Tá lá um corpo estendido no chão.
       Naquela noite não haveria jantar em Ilhéus.
       Diz a lenda que houve fartura de uisque numa residência de gente importante.
       No domingo seguinte, um barco vazio, aquele que deveria levar Manuel Leal e seus amigos, percorreu o trajeto entre o Banco da Vitória e a Baia do Pontal.
       Simbolicamente, Manuel Leal fazia a sua última viagem.
       Parecia o fim, mas era apenas o começo de uma história que ainda não terminou e que fez do jornalista, com seus incontáveis defeitos e inúmeras virtudes, uma bandeira da luta contra a impunidade.

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